Senhores:
hão-de a dor e a ausência ter sabor,
um certo cheiro doce e demorado,
em forma de mil olhos
Pois vós olhastes essa minha ausência,
dissestes que dali criei palavras,
mas não por minha mão
Na vossa história, senhores,
eu fui só voz,
em vez de gente inteira
Inteira, nunca o fui,
dobrada ao meio pelo escuro das vestes,
pelas juras forçadas que cumpri,
pelo dever que me ditou meu pai
Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas,
eu, que as fui construindo devagar,
na escuridão da cela
O resto foi roubado por vós
e noutra língua,
e em mitos que vos eram
necessários
Não fui só voz:
fui eu, dona de mim,
porque as letras me foram, e o amor,
e o ódio vagaroso
Só para isso me valeu viver,
para compor, igual a sinfonia,
tudo o que considerei
Ele foi só palavras que em palavras forjei,
bigorna onde moldei espadas e lanças,
o lume necessário
Só não moldei
as grades da prisão onde vivi:
essas, moldastes vós
até incandescência
Mas eu, nas letras que compus,
eu inventei a ausência como mais ninguém.
Eu fui a mão da ausência
numa cela escura
E os actos dele foram-me as metáforas,
imagens a seguir-me, mais fortes
do que a vida.
Por isso me chamastes, senhores,
no vosso tempo, uma palavra nova e ágil:
literatura
E assim eu fui-vos voz,
e doce mito. E nada mais
vos fui
Quero dizer-vos hoje,
neste tempo tão escuro,
mas de um escuro diverso do que tive:
adeus
Deixai-me o escuro, o meu.
Porque ao lado da minha,
a vossa ausência, essa que em mim plantastes,
nada é.
Tomáreis vós saber o que é ausência
Ausência: eu: demorada nestas linhas.
Dizer com quanto escuro
a noite se desfaz
e se constrói –
[ da Escuro, Assírio & Alvim ]
*
La lettera
Signori:
saranno il dolore e l’assenza ad avere sapore,
un certo profumo dolce e atteso,
in forma di mille occhi
Poiché guardaste questa mia assenza,
diceste che da lì creai parole,
ma non per mia mano
Nella vostra storia, signori,
fui solo voce,
invece di una persona intera
Intera, mai lo fui
piegata a metà dall’oscurità delle vesti
per i giuramenti forzati che prestai
per il dovere che dettò mio padre
Pertanto fui io che feci le lettere di questi fogli,
io, che le costruii lentamente,
nell’oscurità della cella
Il resto fu rubato per voi
in un’altra lingua,
e in miti che vi erano
necessari
Non fui solo voce:
fui io, signora di me stessa,
perché le lettere furono mie, e l’amore,
e l’odio molto lento
Solo per questo mi è valso vivere,
per comporre, come una sinfonia,
tutto ciò che considerai
Furono solo parole che in parole forgiai,
incudine dove modellai spade e lance,
il fuoco necessario
Non modellai però
le grate della prigione dove vissi:
esse, le modellaste voi
fino all’incandescenza
Ma io, nei testi che composi,
io inventai l’assenza come nessun altro.
Io fui la mano dell’assenza
in una cella buia
E i miei atti mi servirono come metafore,
immagini che mi segnano, più forti
della vita.
Per questo mi chiamaste, signori,
nel vostro tempo, una parola nuova e agile:
letteratura
E così fui la vostra voce,
e dolce mito. E nient’altro
fui per voi
Voglio dirvi oggi,
in questo tempo così oscuro,
ma di un’oscurità diversa da quella che avevo:
addio
Lasciatemi nell’oscurità, la mia.
Perché vicina alla mia,
la vostra assenza, che in me avete innestato,
è niente.
Vorrei sapere da voi che cos’è l’assenza
Assenza: io: indugio in queste righe.
Dire con quanta oscurità
la notte si disfa
e si costruisce –